quarta-feira, 18 de março de 2009

O Barco




Paulatinamente os caracteres do nome daquela mulher tornam-se vagos na sua memória; registros insistentes assemelhados a marcas a ferro e fogo no couro animal, a talhas marcadas na madeira ou a pinturas rupestres vagarosamente saem de cena.

Esfumaçam-se e dissipam-se com o vento, carregados com a nostalgia sufocante; sufoco idêntico aos minutos que antecedem a defesa da tese de graduação ou como àqueles que sucedem as manobras que evitaram o naufrágio no alto mar do sul da Bahia.

Ainda possuem aquelas letras a capacidade, sem cerimônia ou bons modos, sem receio ou timidez, de atordoá-lo na hora de dormir e de desconcentrá-lo ao pronunciar em público; cora-se perante estranhos como uma confissão inesperada da saudade que ainda mantém (quase) intacta onde quer que se encontre seu coração: consigo ou partido sem rumo, sem direção, sem bússola ou carta náutica.

Não luta contra o medo e tampouco contra a saudade; sem render-se se leva ou se deixa levar pela correnteza de bons momentos e inúmeras surpresas que a vida lhe reserva. Sem colete salva-vidas ou bote inflável apenas cuida de si, na certeza de que um barco esquecido e solitário, dependendo da praia e da paisagem, pode se tornar belo.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Aqui estamos...

Vontade de sumir? Ir para Indonésia, Patagônia, Everest ou algum lugar por demais distante da sua cidade? Quem sabe se esconder no lado escuro da Lua, onde nem de luneta pode-se ser visto?

Às vezes dá essa vontade; vontade de não falar com ninguém, de não ver e nem ouvir ninguém, nem mesmo a moça do tempo do Jornal das oito. Nem mesmo ela...

É, mas o mundo não pára, o relógio não conta as horas mais lentamente e nem o vizinho abaixa o som com aquela música horrível que escuta. Ninguém se comove com sua fadiga, não se emociona com seus problemas e tampouco lhe perguntam com sinceridade se “está tudo bem?”.

A vida ficou como o amargo do limão no lugar do doce da manga? Ficou como o calor de 45 graus no lugar da suave brisa litorânea? Ficou como o desconforto do banco de pedra no lugar do sofá piano essenfelder gran luxo de quase três metros?

Normal: presenciar desgostos, engolir sapos e ter que matar um leão por dia fazem parte da vida. Aqui estamos...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Amor de Vendedor de Livros


Veio forte, rasgando. Rasgava-lhe de saudade no passar dos dias. Saudade de forma fracionada. Pareceria ser deliciosa; a coisa mais intensa que já sentira na vida. Com seu jeito hipérbole de ver tudo e de viver os sentimentos. Pensara ser amor. Aquele amor que já não imaginara mais encontrar e nem tampouco existir.

Sim, tinham uma boa química, uma boa sintonia. Mas química ele vira no colégio e sintonia é para orquestra musical, banda de música. Assim pensava: tinham que ter amor; e isso não tiveram e nem tentaram ter. Nem tentaram pela simples explicação de que já imaginavam estar amando. Já? Tão rápido! Imaginavam…

Toda aquela fantasia levada a cabo de suposições, criada do absurdo devaneio de que um dia lhe bateria à porta o tal do amor. O tal do amor.

Tal como um inconveniente vendedor daquelas enciclopédias de psicologia ou plantas medicinais que compramos por empolgação, no entusiasmo, e que deixamos guardada em alguma estante, empoeirando, sem uso e quando não mais as queremos as damos a alguém, quase que implorando para um ser aceitá-las. Então, depois de algum tempo, quando algum outro vendedor de livros com uma bela gravata, sorriso cativante e boa fala à nossa porta bater, novamente cometermos a impensada aquisição. Tal como as paixões.

Com eles aconteceu assim: impensadamente, inesperadamente; surpreendendo-lhes com todos aqueles apertos no peito, surtos de saudade e momentos em que mais se parecia em transe, fora de si. Amor de vendedor de livros: empolgante e fácil de esquecer.

Toda aquela fantasia de nada servira? Fora uma vã imaginação? Claro que não! Fora divertido tal qual um sorvete em um quente dia de verão; refrescante, porém com o fim inevitável. Empolgante e ao findar-se, normal. Cotidiano, com ligações reduzidas a singelos "alôs", conversas impacientes e promessas (nem sempre cumpridas) de ligar algum outro dia. Anunciado como o fim de uma etapa ou de um período. Semelhante ao tempo de uma gestação.

Faltou-lhes algo. Alguma coisa que ambos não podiam nem tentaram explicar, sequer anos depois, mesmo porque não sabiam o que era, e não se deram ao trabalho de solucionar.

Algo nela o perturbava; algo nele a irritava. Perturbação e irritação que os conduziram a um fim trágico. Não pelo fim em si mesmo, mas pela constatação de que estavam demasiadamente corretos quanto ao que não sentiam; quanto ao que nunca sentiram.

Final recheado de desculpas e coberto com desconfianças. Repleto de medo e conformismo espalhados numa fôrma banal em forma de infantilidade e egoísmo.

Final anunciado quando o espaço entre um encontro e outro se reduzia a meras expectativas de sexo jovial e noites de prazer conduzidas pela embriaguez e insensatez de garrafas de vinhos, seguidas por manhãs em que as manhas se afloravam e se apresentava um dispensável jogo de sedução no qual pernas se enroscavam, bocas não se falavam e corpos se encontravam. Bocas com hálito noturno/matutino que não se impediam de saciar as vontades que tinham. Vontades nutridas pela ausência consentida. Às vezes conveniente e até deliciosa.

Veio forte, e assim como veio, foi-se. Aliviando tensões criadas pela própria tensão e quebrando o pacto de ficarem juntos para sempre. Pacto previamente estabelecido no imaginário delirante de ambos, porém nunca dito ao outro. Pacto tácito combinado de forma egoísta. Talvez pelo medo de ser verdadeiro ou pela realidade de nunca ser; talvez pelo medo de não dar certo ou simplesmente pelo medo de sentir medo.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Variações sobre o mesmo tema


Sinto forte o nó na garganta,
quando você se despede,
quando o último beijo é o último por muitos dias,
e quando por muitos dias só te vejo de olhos fechados.

Sinto forte o aperto no peito,
quando começo a necear com a sua ausência,
vacilando entre lucidez e um certo estado de irreflexão,
e quando fecho os olhos para não ver o vazio ao meu lado.

Pensamento paralisado pelo fato de louquejar sutilmente,
pela lembrança nostálgica que aos poucos torna-me ébrio,
que disfarça um receio que logo se extingui,
expondo a fictícia calma que por muito se perdura.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Se Eu Cantasse (ou Aula de Canto)


Os fogos de artifício não me incomodam tanto. O estridente latido do cachorro do vizinho já não é incômodo algum. Carros de som fazendo propaganda na rua em pleno domingo de manhã. Música alta tocando em aniversário de criança quando quero conversar baixo. Em nada me atrapalham. Fúteis conversas animadas de senhoras sem ocupação, decidindo qual o melhor tecido pra se fazer uma passadeira nova, qual a cor que mais combina com a parede recém pintada em algum tom pastel e onde se comprar o material, quase não me incomodam. Nada se compara à minha voz desafinada quando tento cantar em sol maior ou mi menor. Enfim, em qualquer tom.

Não que eu queira ser um grande popstar de arrastar multidões, de encher ginásio esportivo e de levar garotas ao delírio. Essa pretensão eu nunca tive. Só queria mesmo cantar mais ou menos, no mínimo não desafinar tanto, não variar tanto as notas dentro de um simples dó sustenido. Até no banheiro, enquanto ensabôo meus cabelos, desafino tentando alcançar um ré qualquer, um misero rézinho sem importância alguma.

Deixa...deixa... Diriam-me aqueles que já nasceram sabendo cantar. Isso não é o mais importante. Claro que é. Lógico que é! Como não é o mais importante? Quando estou com ela isso é importante pra mim.

Acho que vou fazer aula de canto. Pra lhe sussurrar meus segredos, meus medos e desejos. Pra dizer minhas vontades ao seu ouvido, arrepiando os pêlos do pescoço. De ambos os pescoços. Enquanto ela tentasse dormir, de bruços ou de costas pra mim, cantaria baixinho nossas músicas preferidas, ainda que no meu inglês colegial ou no meu português comum. Atrapalharia nosso sono. Iniciaríamos nosso sonho. Terminaríamos sabe-se lá aonde. Se eu cantasse
.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Bestialidades


Não se sentia bem pensando aquelas bestialidades, não era mais o mesmo. Nem seus ternos eram mais os mesmos. Tudo mudara: as cores das gravatas, os quadros nas paredes (as paredes), os tapetes na entrada e a entrada em si.

Contara-me um dia desses que nem mesmo o ar era capaz de entrar e encher-lhe os pulmões de vontade; que parecia ar boliviano, rarefeito; que não mais lhe preenchia euforicamente como fizera antigamente, e nem mais lhe trazia nostalgias, divagando em indesejados devaneios. De certo que por motivos e razões análogas às de outrora, mas com toques e pitadas de maturidade, de descontentamento e qualquer coisa que dê para disfarçar ao longo do dia apenas tornando-se ébrio.

Dissera-lhe que parasse de procurar culpa, culpados, dolo e dor. Tolice viver a apurar responsabilidades. Ainda que um dia já se orgulhara em ser tolo deveria ao menos não delirar-se com estapafúrdias e absurdas desculpas. Ora, elas viriam aos milhares, inundando-o de ausência de pensamento lógico acerca do plausível, do óbvio.

Não seriam culpados ou circunstâncias, ausências ou fugas, intenções ou apatia que lhe faria observar e compreender, se é que possível seja, o que lhe sucedera naqueles dias de naufrágio interior. Uma tempestade semi-tropical de inverdades, de desajustados sentimentos e de sentidos pouco aguçados.

Não havia nostalgia, não havia desejo de reviver a mal contada história que ocorrera. Nenhuma saudade, nenhuma dessas meiguices românticas, enervadoras. Não afirmava, tampouco desmentia, que não mais entregar-se-ia tolamente, loucamente. Generalizava tudo em um mesmo patamar de descontentamento, de desilusão, mesmo informado que não há nada mais besta que generalizações precipitadas.

Não se julgava precipitado como antes. Via-se sóbrio, não mais entorpecido por sentimentalidades inquietantes. Com esforço enorme arrancara de cenas confusas alguns fragmentos, alguns pedaços de contrariedade; arrancara montanhas de infelicidade.



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Manchas de Sorvete e Bigode de Suco de Uva.


Quando ele chega trás consigo a alegria, o sorriso farto, oferecido e contagiante; trás consigo carinhos ingênuos, abraços apertados e beijos por todo meu rosto; trás comentários desconcertantes e perguntas embaraçantes;

Quando ele chega me leva a um outro mundo, esquenta meu coração e acalma minha alma. Somos dois solteirões eu pego carona na sua beleza, no seu carisma e na sua cara lavada. Elogios de tabela: ótimo.

Confere seu quarto, averiguando se todos os brinquedos estão por lá. Se todos os carrinhos estão estacionados no lugar que os deixou. Me explica todas as vezes que não pode subir na janela, porque é alto e perigoso e pode cair e machucar. Confere se o porta-retratos ainda está no móvel da sala e acha graça da sua foto com um embrulho de presente na cabeça (realmente é ótima essa foto).

Quando ele vai embora viro um pai sem manchas de sorvete no meu jeans; quando ele vai embora leva consigo o bigode de suco de uva; leva o sorriso fácil; a alegria.

Quando ele vai embora eu me lembro que os próximos dias serão de saudade. É fogo ser pai de fins de semana.